Com um solavanco, o C-130 aterra na pista do aeroporto de Cabul. No seu interior, encontra-se um grupo de militares que integrará a força portuguesa no Afeganistão. Anita, técnica de comunicações do exército, é um dos soldados que sente o torpor da chegada enquanto observa pela vigia a realidade fria e poeirenta que a espera.
À saída do avião cumprem-se formalidades próprias do exército, gestos semelhantes ao render da guarda, e tal. Os mecanismos cerebrais de Anita, ainda animados de uma inércia comum nestas ocasiões, não dão conta da longínqua distância que a separa de um mundo que é o seu. O Satão, as vindimas e o namorado ficaram lá longe, noutro planeta.
Sempre fora dada a assuntos de homem - coisa, que, aliás, se depreendia do arcaboiço imponente da rapariga. Na sua aldeia natal, nunca se furtara a tarefa de sacho, manobras de trator, ou concursos de carregar fardos. O seu andar pesado acentuava uma masculinidade que se adivinhava, latente. Não passariam muitos dias para que, à porta da caserna e recebendo na face o vento cortante das montanhas em redor de Cabul, deixasse escapar uma lágrima dos olhos enormes. Por tudo e por nada.
Um dia desfilará, de arma a tiracolo, pelas ruas poeirentas da capital afegã, ladeadas por casas miseráveis de adobe e chapas de zinco. Os afegãos, pouco habituados a ver mulheres sem a face tapada, fixarão os olhos nas suas calças camufladas. Para espanto de Anita, os homens não terão receio de encará-la frontalmente, olhos nos olhos, quando forem interpelados. Ao fim de algumas horas a receber olhares que atingem como tiros, perguntará ao primeiro afegão que insistir em fitá-la: "- Estás a olhar, ó filha da puta?"