- Luís, estás acordado? – sussurrou Pedro, apoiado num cotovelo.
Na cama ao lado, banhada pelo luar que entrava pela janela, ouvia-se o som da respiração de alguém que ainda não dormia.
- Sim, mas não devia. Amanhã estaremos cheios de sono pela manhã. Que tens?
- A Rita saiu há uns minutos, talvez para ir à casa-de-banho, e ainda não voltou. Desde então que não consigo adormecer.- comentou o Pedro.
Luís suspirou, enquanto se destapava, pondo as pernas fora da cama. Tinha os olhos fixados na janela, por onde entrava aquele rio de prata que iluminava o quarto. A luz prateada tem o dom de fazer maiores os objectos, deformando-os, sobretudo aos olhos dos meninos que não conseguem dormir. Esfregando a vista, Luís levantou-se e, descalço, acercou-se da janela. Lá fora o mundo fora absorvido por um manto negro, cozido a pérolas perto do horizonte, onde ficava o mar. As copas dos pinheiros do bosque em frente, de silhuetas cortadas pela luminosidade lunar, baloiçavam ao vento, causando uma sensação de estranheza em Luís. Eram mesmo parecidas com gigantes, impacientes no seu agitar, de lá para cá, de cá para lá, severos, prestes a marchar sobre a casa dos meninos que deviam estar a dormir. Confortado pela presença do irmão, o Pedro nem pensava nestas coisas. Um pouco assustado com o exército de espectros da Lua Cheia, Luís voltou para a cama, onde se sentou, massajando os braços para enganar o frio nocturno. Notou seu irmão acordado, olhos fitos no tecto, mãos atrás da nuca, como se estivesse deitado na relva de um jardim numa bela tarde de Primavera.
- Pedro...- começou – será que as coisas, quero dizer, os brinquedos, os móveis e assim; mudam de forma, assim que apagamos a luz? Estamos quase sempre de olhos fechados, por isso nunca pensámos muito nessas coisas...
- Bem, eles lá estão. Consigo adivinhá-los no escuro do quarto, porque lhes vejo alguns contornos. Mas as cores não as vejo, nem posso ver o seu tamanho.
Interessado pela conversa, Luís sentou-se encostado à parede gelada ao lado da cama, enquanto dizia:
- Já reparaste nas sombras? Dir-se-ia que se movem quando não estamos a olhar para elas. – neste momento a voz do Luís passou a ter um timbre mais agudo e trémulo, mas era fácil perceber que isso nada tinha que ver com o frio.
- Mas as coisas não têm vida! São feitas de plástico, metal, pedra, madeira e coisas assim! – exclamou o Pedro, de olhos esbugalhados, começando a sentir medo daquelas formas negras que o luar abraçava.
Após breves segundos de silêncio, Luís, como para camuflar-se de breu, enterrou-se nos lençóis até ficar só com os dois olhitos à vista
- Supõe tu, Pedro, que o escuro faz com que as sombras se descolem das coisas às quais pertencem. Só que, como são muito pastosas e assim, só podem mexer-se um pouco de cada vez.
- Que ideia estranha, pá – disse com voz quase apagada o Pedro, começando a desgostar da conversa.
- E se houver algo, como um fantasma especializado em empurrar sombras? Como aqueles senhores que arrumam os carrinhos de compras nos supermercados.- propôs o Luís, falando das profundezas do seu ninho de tecido, enquanto olhava em volta, sondando tudo em seu redor.
- Sabes bem que não existem fantasmas!
- Mas o Eurico, do 6º ano, diz que viu um em casa da tia, lá no Fundão. Para além disso, já te disse que nós não sabemos como ficam as coisas assim que fechamos os olhos.
- Agora é que não durmo mais!.... – concluiu o Pedro.