sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

No banco de trás


É mais ou menos consensual que o rock n' roll não passa de um ciclo no qual se regurgitam (ou reciclam) tendências. É do senso comum que a globalização trouxe uma maior agressividade comercial das editoras deste género musical, vomitando discos a uma velocidade estonteante, resultando num decréscimo impressionante da qualidade dos discos e no desaparecimento de tudo o que realmente represente criação inédita, já que a novidade implica quase sempre um elevado risco económico. Assim, vamos andando de re-moda em re-moda. Agora estamos no ressurgir do pós-punk e eu bocejo com bandas que são pastiches dos The Jam, Gang of Four (que andam por aí outra vez), Clash, Stranglers, etc...



Tirando os Arcade Fire. Como diria o Adolfo, esses são uma lufada de brisa imaculada nesta latrina mal arejada. Agradeço a Deus pelo Funeral, único disco que ficará para a posteridade do Pop Rock, desde o Nevermind até agora. Para mim, escrever sobre música é tarefa difícil. Assim, não me vou por aqui a dissertar sobre essa obra-prima dos Arcade Fire, já que muita tinta tem corrido sobre eles. Deixo apenas uma curiosa nota : antes de sair o Funeral, saiu numa revista d' O Público uma crítica impressionante ao disco. Nota conferida 7/10. Aqui está a prova de se presenciar o momento histórico de uma inovação artística. O texto esquadrinhava o albúm com a paixão de alguém que se encontra estarrecido, música a música. No entanto, algo nele afrontava os galões do crítico, decerto habituado a ter as coisas bastante simplificadas nestes temas. Desta vez era diferente; não conseguia aplicar as chavões habituais, havia uma insubmissão estilística que escapava ao crivo da crítica. Desta vez, os putos, pedantes, criavam de forma independente, virando para meio mundo o cu ao léu.



Meses depois a crítica oscilava entre 9/10 e 10/10.




quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Epílogo de uma viagem


Não devia fazer isto, mas meu irmão André Pinto (célebre por ser a minha imagem moldada em sentatez e contenção de espírito), deixou de forma incauta o seu velho diário de viagem abandonado em cima da mesa da sala de jantar. Li-o com avidez rapace. O que mais de surpreendente contém, é o último parágrafo no qual se lê uma comoção genuína, típica das grandes despedidas, nascidas de corações melosos, mas nada própria do meu gélido irmão. Ei-lo.
"Há ainda a incerteza de voltar a fazer semelhante viagem de comboio por outras paragens. Incerteza justa e quase fundada, não fosse a necessidade de ver e conhecer que me assalta sempre que recebo notícias de países distantes, onde outros fados se cantam. Vencendo essa fraca inércia do espírito, a viagem ainda será longa. Páro aqui por algum tempo para viver e descansar."

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Viajar de comboio



"Otro Viaje

Ya en los campos de Jaén,
amanece. Corre el tren
por sus brillantes rieles,
devorando matorrales,
alcaceles,
terraplenes, pedregales,
olivares, caseríos,
praderas y cardizales,
montes y valles sombríos.
Tras la turba ventanilla,
pasa la devanera
del campo de primavera.
La luz en el techo brilla
de mi vagón de tercera.
Entre nubarrones blancos,
oro y grana,
la niebla de la mañana
huyendo por los barrancos.
¡Este insomne sueño mio!
¡Este frío
de un amanecer en vela!...
Resonante,
jadeante,
marcha el tren. El campo vuela.
Enfrente de mí, un señor
sobre su manta dormido;
un fraile y un cazador
-el perro a sus pies tendido-.
Yo contemplo mi equipaje,
mi viejo saco de cuero;
y recuerdo otro viaje
hacia las tierras del Duero.
Otro viaje de ayer
por la tierra castellana
-¡ pinos del amanecer
entre Almazán y Quintana!-
¡Y alegría
de un viajar en compañia!
¡Y la unión
que ha roto la muerte un día!
¡Mano fría
que aprietas mi corazón!
Tren, camina, silba, humea,
acarrea
tu ejército de vagones,
ajetrea
maletas y corazones.
Soledad,
sequedad.
Tan pobre me estoy quedando
que ya ni siquiera estoy
conmigo, ni sé si voy
conmigo a solas viajando."


Antonio Machado, Campos de Castilla

domingo, 26 de novembro de 2006

Strøget


Depois de uma hora de caminhada ao longo da rua Strøget, senti os nervos tremerem de mansinho como larvas impacientes para sair do casulo. Voltar para trás estava fora de questao! Chegar ao fim da rua tornara-se o eixo da minha casmurrice, uma absurda aposta que fazia com a minha própria vontade. As pessoas que comigo se cruzavam mostravam a mesma decisao fanática chispando nos olhos; sobretudo as que passavam em sentido contrário. Por toda a parte se viam pequenas nuvens de exalaçoes ofegantes, como se cada homem, cada mulher e criança fossem impetuosas locomotivas orgânicas.
Ficava mais e mais cansado, as botas pesando como chumbo. Foi por esta altura que comecei a reparar nas pessoas que caiam inanimadas, vencidas pelo esforço desumano da caminhada, maxilares descaídos como cavalos de corrida em fim de prova. Nada disso penetrava a minha insane inércia de chegar ao fim e transpor o limiar da Strøget.
Pressa,
Espasmo,
Animal,
Espuma. O Sol é azeite na ressaca das ondas de espraio, tranquilas, que lambem o talude da praia no entardecer de fim de Verao. Espreguiço-me e vou para casa fazer um refogado.

sábado, 11 de novembro de 2006

Closing time

Tempo de fechar. Os empregados do bar lançam-me olhares impacientes cada vez que passam junto da minha mesa, absortos na azáfama do encerramento do estaminé. Decido abusar da sua benevolência. Sempre fui assim.
Num movimento, que pode ter demorado o tempo que leva a destruir um império, viro a cabeça e encaro a vasta janela de vidro que me separa da estranha realidade nocturna de uma cidade semi-adormecida. A água da chuva escorrendo na superfície lisa do vidro deforma a parca luz vinda de fora e, como se brincando às divindades, cria um novo mundo de formas ondulantes. Tal como o fumo que sai do meu cigarro, acabo de ver passar um casal de apaixonados transformado num excêntrico par de serpentes vestidas para um Inverno húmido. Os poucos carros que rodam pela avenida deixam atrás de si um cortejo de faixas encarnadas, laranjas e amarelas. Nao deixam de ser tristes na sua solidao festiva, como uma criança tentando festejar o seu aniversário sem convivas.
Mas que raio estou para aqui a dizer? É só uma noite fria, e um idiota divagando num bar é um empecilho para gente trabalhadora (sim...calma, já vou sair) que quer limpar a mesa e seguir para casa, onde uma cama mortificante aguarda o corpo aborrecido de cada dia.
Talvez só mais uma... para o caminho... ? Nao? Merda.... e que frio faz lá fora!

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Um ano, um blog


"Boas entradas!

Não sendo um ávido leitor de belogues, decidi criar um, numa noite em que toureio a insónia. Este é um pequeno espaço onde se pretende expôr pequenos textos que sigam a disposição espiritual do autor. Os filmes, os livros, fragmentos de cada dia, relatos de opíparas refeições, recomendações da vida conjugal, segredos da bricolage e outras pequenas delícias de cada dia, constarão neste ciber-local. Quem não gostar, que o diga, ou melhor, escreva. Quem se sentir irritado, que insulte, pragueje. Força. Até porque não creio que alguma vez este canto seja lido por alguém que não seja familiar ou amigo. Um grande bem haja para todos os belogueres!!!!!"


Há um ano, seguindo um impulso para o qual nao (teclado espanhol...) encontro explicaçao, decidi criar um blog que deu vazao a alguma vontade literária que a espaços me assalta. Olhando para trás no tempo e contemplando os textos aqui publicados, chego à conclusao que o vazio inicial que presidiu à fundaçao do blog se foi transmutando numa tentativa de criaçao artística, num projecto compilativo de textos. A essência desse projecto foi assumindo contornos cada vez mais pessoais, persistindo sobre a ausência de comentários e de publicidade noutros espaços semelhantes. Pela minha parte, nao farei qualquer alteraçao ao estilo e conteúdo d'O Desgraçador, tendo em vista a recolha de comentários bajuladores em grandes quantidades.

O futuro deste espaço é certo e está traçado na sua origem: o fim. Nao obstante os determinismos que nos impoem as realidades finitas das nossas existências, posso garantir que continuarei a escrever aqui quando e enquanto me aprouver. Este permanecerá o espaço da minha tirania intelectual, o reino onde a minha palavra é soberana. O auge desta saborosa ditadura pessoal será o momento em que darei por finda a vida deste blog, afirmaçao completa de uma alegre independência mental. Prometo, até que chegue a altura de fechar as portas, continuar a escrever com irregularidade e despudor.

Um abraço, Luís

quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Saber olhar a realidade

"Volvamos la espalda a las éticas mágicas y quédemonos con la única aceptable, que hace veintiséis siglos resumió Píndaro en su ilustre imperativo 'llega a ser lo que eres'. Seamos en perfección lo que imperfectamente somos por naturaleza. Si sabemos mirarla, toda realidad nos enseñará su defecto y su norma, su pecado y su deber."


in José Ortega y Gasset, España Invertebrada

domingo, 17 de setembro de 2006

Iceberg




É-me difícil e penoso relembrar todos os acontecimentos. Posso assegurar que estava deitado na minha cama, absorvido pelos sofrimentos do jovem Werther, quando reparei na ponta branca que despontava do meu saco de viagem verde, colocado no armário semi-aberto. Absorto e estupefacto, mantive-me imobilizado durante largos minutos, com os braços hirtos segurando o livro aberto na mesma página. Verificava que a ponta subia e exibia mais superfície branca, numa cadência semelhante à subida do sol nascente no horizonte. Era agora notório que a sua superfície era facetada, como um cristal prismático, com ângulos constantes entre as faces. Quando esse obelisco cristalino, de um branco gélido, já excedia a altura de um homem, sentei-me na cama, depositando lentamente o livro no regaço, sem deixar de avistar com aguda obsessão o gelo que conquistava o armário. Não guardo na memória como me levantei e me acerquei da porta entreaberta do armário, mas aflora-me a ideia de um frio imobilizador, um aroma a pinheiro e bacalhau. O certo é que o gelo se propagou com rapidez pelas paredes. Através da janela, ainda virgem de água sólida, sumia-se cada vez mais distante, uma Espanha surreal. Depois, nada. Azul, branco, cinzento, homogeneidade, linhas paralelas. Espelhos. Milhares de espelhos reflectindo milhares de nadas cristalinos. Feito de gelo, assolado por cavidades de pontes de hidrogénio, vi-me transformado no Iceberg da Fraternidade.

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

O Hotel do Amor Animal

Eis uma fracção de um poema-canção de David Berman, sobre um encontro infeliz com a prática do bestialismo na pátria da democracia, "home of the brave", terra de oportunidade, etc.


Goshen, séc. XIX

"(...)the passage kept on going like the carpet was flowing
towards that thing at the end of the hall.
my own eyes had adjusted.
my account can be trusted,
cause I know that I saw what I saw.

I heard animal noises and tangled up voices
chanting more and of rumors of more.
there's no natural law that can explain what I saw
spread out on that straw-covered floor.

now I've put an ocean between myself and Goshen
to get away from the Farmer's Hotel.
things so unclean, are better left unseen.
keep away from the Farmer's Hotel.

the lights went out in Goshen, just like poetry in motion,
and I checked into the Farmer's Hotel.
so if you get a notion to travel to Goshen,
please stay away from the Farmer's Hotel."

in Farmer's Hotel, álbum Tanglewood Numbers, Silver Jews

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

A Lista de Verão

A pequena lista que levo para o exílio asturiano.

Aldous Huxley - Admirável Mundo Novo;
Arundhati Roy - O Deus das Pequenas Coisas;
Georges Simenon - O Homem Que Via Passar Comboios,
- Maigret e a Louca,
- Maigret e o Porto das Brumas;
Henry Miller - Opus Pistorum,
- O Sorriso Aos Pés da Escada;
H. D. Thoreau - A Desobediência Civil;
Jean Giono - Un Roi Sans Divertissement (sem tradução portuguesa);
João Aguiar - Os Comedores de Pérolas;
John Steinbeck - As Vinhas da Ira;
José Ortega y Gasset - Espanha Invertebrada,
- Sobre a Caça e os Touros;
Lídia Jorge - A Costa dos Murmúrios;
Miguel Torga - O Senhor Ventura;
Thomans Mann - Morte em Veneza;
Ueda Akinari - Contos da Chuva e da Lua.

segunda-feira, 31 de julho de 2006

Miles of illusion

Estava feito. Não havia regresso da maré encarnada a que se lançara. Deitando um olhar em redor da sala mergulhada na espessa penumbra crepuscular, descortinou a porta que sabia dar acesso à casa-de-banho. Uma vez lá dentro, diante do espelho repleto de manchas sebosas, deparou-se com uma tenebrosa aparição. No vidro conspurcado desenhava-se uma cara ossuda, olhos raiados de sangue, um queixo pequeno, ligeiramente erguido, que lhe conferia um porte de certa distinção. O nariz pingava água, sintoma de constipação que lhe pareceu obsceno na circunstância em que se encontrava. Nada deveria relembrá-lo de que estava vivo, no entanto procurava papel para se assoar. Passou as mãos por água, demorando bastante mais do que seria razoável. Encontrava-se bloqueado e apenas concentrado na sensação que a escorrência do líquido lhe provocava, primeiro nas mãos, depois num arrepio que trepava espinha acima. A certa altura, o frio tornou-se-lhe insuportável e despertou daquela letargia absurda. Com gestos lentos, e não sem tornar a fitar a face mirrada que o espelho reflectia, puxou de uma toalha que lhe pareceu áspera ao tacto, dando a impressão de uso ininterrupto desde longo tempo. A lâmpada precariamente pendente do tecto, lançava uma luminosidade intermitente; profecia de extinção que se avizinha na certa, ocorrência simplória em todo aquele cenário, mas plena de infames simbolismos para um homem torturado na sua consciência.
Saiu da casa-de-banho de cabeça baixa, com a vista posta nas redondezas que os seus pés frequentavam. Pensou que devia manter um certo sangue-frio e procurar detalhes insuspeitos que denunciassem postumamente a sua presença naquele apartamento, naquela noite. Em tudo se assemelhava a um cidadão que lança um último olhar ao seu lar antes de partir para umas merecidas férias. Decidiu fazer café, internando-se numa busca pela cozinha, certamente desnecessária e arriscada, mas sentiu que precisava de um impulso interior para tomar a decisão de partir, porque, no fundo, a sua viagem já começara minutos antes. Bebeu aquele líquido sujo, demasiado amargo para o seu gosto, e saiu do apartamento de forma intempestiva.
Os primeiros raios de sol, peneirados pelos estores da janela, começavam a dissolver a treva, incidindo sobre o cadáver de adolescente, ainda quente, tombado no meio da sala em cima de uma imitação barata de tapete persa.
Lá fora ouviam-se os arranques esforçados dos autocarros que despertam a cidade da sua latência nocturna para mais um dia de insanidade. Na sala, Miles Davis soltava as tristes notas de It Never Entered My Mind.

terça-feira, 27 de junho de 2006

Complexidade ou embuste?

A ideia que temos da complexidade da vida, enquanto dado adquirido, é uma banalidade propalada tanto em ditados populares como em tratados de eminentes pensadores académicos. A visão labiríntica de um sistema político ou de um Estado é um lugar comum sobre o qual ninguém se debruça, como se se tratasse de uma fatalidade, uma emanação. Para onde quer que nos viremos, a complexidade das coisas surge como uma doença crónica à qual nos devemos habituar e que seguirá os nossos passos pela vida adentro. Qual a origem, qual o propósito desta dificuldade tão global, tão cândidamente aceite?

"A surpresa de Karamallah não era fingida; estava verdadeiramente surpreendido com a persistência e a amplidão de um pensamento inepto que julgava incapaz de florescer em terras ensolaradas. Assim, a velha ideia emitida por ilustres pensadores originários das regiões frias, segundo a qual o mundo seria complicado e absurdo, tinha atravessado os oceanos e as fronteiras para vir aninhar-se no cérebro de um abominável escroque das margens do Nilo. Esta vilania consistente em negar a simplicidade edénica do mundo servia os interesses dos poderosos, posto que justificava todas as dificuldades sofridas pelas massas ignorantes. "

in As Cores da Infâmia, Albert Cossery

sexta-feira, 12 de maio de 2006

História de Susto e Imaginação (parte II)

Ficaram assim estendidos e tapados até ao nariz, com os olhos quase saltando das órbitas, tal era o receio que sentiam em relação ao universo escurecido do quarto, onde as negras formas se divertiam apanhando banhos de Lua.
Estava a rapaziada nestes preparos quando a porta se abriu para deixar entrar a Rita, sua irmãzinha mais nova, que vinha com a cara branca como cal, avançando hesitante nas suas pantufitas em forma de gato Silvestre, o dos desenhos animados. Deixando a porta entreaberta atrás de si, dirigiu-se para a cama do Luís, que era o mais velho dos três, dizendo aos solavancos:
- Mmm...Momo...Montro!
Não percebendo bem as palavras mal articuladas da irmã assustada, Luís ergueu-se na cama.
- Quê? – perguntou apurando o ouvido.
- Montro!- repetiu a petiza, apontando o vazio negro para lá da porta
A face alva da Rita estava com pequenos vincos de receio nos cantos da boquita e no meio da testa rosada. Via-se que tremia um pouco, porque os caracóis loiros que lhe caíam em cascata sobre os ombros, vibravam como espigas numa seara em dia ventoso.
Os dois irmãos saltaram da cama num só movimento, recebendo em todo o corpo o choque do ar gélido do quarto. Fitaram-se durante uns momentos, até que o Pedro perguntou:
- Onde está o monstro, Rita?
- Na sala.- e aqui a menina já se escondia na cama quentinha do Luís, pondo a almofada sobre a cabeça.
Preso pelo medo ganho na conversa que tivera com o Pedro, Luís deu finalmente o primeiro passo em direcção à porta. Pé ante pé, passaram em frente ao quarto dos pais, percorrendo o corredor até à extremidade onde se encontrava o início da escada que descia em direcção à sala. O monstro estaria, portanto, na divisão da casa onde a família passava os seus serões e comia as refeições em dia de festa. Chegádos ao fim do corredor, a terrível visão que tiveram do cimo das escadas quase parou o coração das pobres crianças. Lá estava ele, materializado numa sombra de contornos horríveis, projectada na parede branca que acompanhava a escada na sua descida até à sala. A criatura tinha vários metros de altura, outros tantos de comprimento, uma cabeça enorme e quase esférica, no cimo da qual despontavam dois soberbos chifres. As patas eram grossas como as colunas de um templo romano, movendo-se bruscamente em espasmos. O dorso arqueado possuia uma sequência de escamas finas e triângulares, movimentando-se para cima e para baixo. A cauda permanecia repousada no chão, agitando-se apenas a sua ponta, num gesto de aviso, tal como um cascavel.
É necessário dizer que nas crianças, mais irresistível que o receio é a curiosidade. Assim, em silêncio e quase em simultâneo, Luís e Pedro principiaram a descida das escadas, movidos pelo desejo de verem a besta senhora daquela sombra. Durante o percurso, feito de forma vagarosa e calculada, teria sido possível a uma sevilhana dançar ao som do bater dos dentes dos meninos. Quando chegaram ao ponto da escada a partir do qual já se podia ver toda a sala, abriram os olhos, transbordantes de ansiedade, e... viram-no. O monstro. O gato Rodolfo, fazendo tropelias com um novelo de lã sobre a mesinha de café, posta no meio da sala em frente ao sofá grande, onde também havia um candeeiro deixado ligado por esquecimento dos pais.
Já respirando normalmente e enxugando o suor da testa com as costas da mão, os irmãos descansaram.
- Tens razão, Luís: à noite as sombras soltam-se da gente.

quinta-feira, 11 de maio de 2006

História de Susto e Imaginação (parte I)




- Luís, estás acordado? – sussurrou Pedro, apoiado num cotovelo.
Na cama ao lado, banhada pelo luar que entrava pela janela, ouvia-se o som da respiração de alguém que ainda não dormia.
- Sim, mas não devia. Amanhã estaremos cheios de sono pela manhã. Que tens?
- A Rita saiu há uns minutos, talvez para ir à casa-de-banho, e ainda não voltou. Desde então que não consigo adormecer.- comentou o Pedro.
Luís suspirou, enquanto se destapava, pondo as pernas fora da cama. Tinha os olhos fixados na janela, por onde entrava aquele rio de prata que iluminava o quarto. A luz prateada tem o dom de fazer maiores os objectos, deformando-os, sobretudo aos olhos dos meninos que não conseguem dormir. Esfregando a vista, Luís levantou-se e, descalço, acercou-se da janela. Lá fora o mundo fora absorvido por um manto negro, cozido a pérolas perto do horizonte, onde ficava o mar. As copas dos pinheiros do bosque em frente, de silhuetas cortadas pela luminosidade lunar, baloiçavam ao vento, causando uma sensação de estranheza em Luís. Eram mesmo parecidas com gigantes, impacientes no seu agitar, de lá para cá, de cá para lá, severos, prestes a marchar sobre a casa dos meninos que deviam estar a dormir. Confortado pela presença do irmão, o Pedro nem pensava nestas coisas. Um pouco assustado com o exército de espectros da Lua Cheia, Luís voltou para a cama, onde se sentou, massajando os braços para enganar o frio nocturno. Notou seu irmão acordado, olhos fitos no tecto, mãos atrás da nuca, como se estivesse deitado na relva de um jardim numa bela tarde de Primavera.
- Pedro...- começou – será que as coisas, quero dizer, os brinquedos, os móveis e assim; mudam de forma, assim que apagamos a luz? Estamos quase sempre de olhos fechados, por isso nunca pensámos muito nessas coisas...
- Bem, eles lá estão. Consigo adivinhá-los no escuro do quarto, porque lhes vejo alguns contornos. Mas as cores não as vejo, nem posso ver o seu tamanho.
Interessado pela conversa, Luís sentou-se encostado à parede gelada ao lado da cama, enquanto dizia:
- Já reparaste nas sombras? Dir-se-ia que se movem quando não estamos a olhar para elas. – neste momento a voz do Luís passou a ter um timbre mais agudo e trémulo, mas era fácil perceber que isso nada tinha que ver com o frio.
- Mas as coisas não têm vida! São feitas de plástico, metal, pedra, madeira e coisas assim! – exclamou o Pedro, de olhos esbugalhados, começando a sentir medo daquelas formas negras que o luar abraçava.
Após breves segundos de silêncio, Luís, como para camuflar-se de breu, enterrou-se nos lençóis até ficar só com os dois olhitos à vista
- Supõe tu, Pedro, que o escuro faz com que as sombras se descolem das coisas às quais pertencem. Só que, como são muito pastosas e assim, só podem mexer-se um pouco de cada vez.
- Que ideia estranha, pá – disse com voz quase apagada o Pedro, começando a desgostar da conversa.
- E se houver algo, como um fantasma especializado em empurrar sombras? Como aqueles senhores que arrumam os carrinhos de compras nos supermercados.- propôs o Luís, falando das profundezas do seu ninho de tecido, enquanto olhava em volta, sondando tudo em seu redor.
- Sabes bem que não existem fantasmas!
- Mas o Eurico, do 6º ano, diz que viu um em casa da tia, lá no Fundão. Para além disso, já te disse que nós não sabemos como ficam as coisas assim que fechamos os olhos.
- Agora é que não durmo mais!.... – concluiu o Pedro.

sexta-feira, 21 de abril de 2006

Delírio Tremendo no Combro

Noutro dia, encontrava-me em improvisadas assobiações, bandas sonoras de pensamentos divagantes, quando me surpreendo a iniciar a descida do Combro. O aumento de velocidade tornou-se demasiado óbvio para ser ignorado, o que me chamou a atenção para os pés. Estes já não se chamavam assim; eram rodas em roda-viva, rolando Combro abaixo. Enquanto o vento me deformava as feições da cara, tive uma epifania fantástica: o único ponto fixo era eu, sendo a cidade que se afastava a velocidade vertiginosa, aproveitando o facto de me apanhar numa descida, tristemente metamorfoseado num peão-velocípede. Já antes me acontecera ter de seguir atrás de cidades traiçoeiras que, a dada altura, decidiram por capricho ou desamor fugir-me na circunstância da distracção. Por exemplo, ainda há coisa de dias deixei Chaves, imagine-se, em Trás-os-Montes! E há coisa que um viajante possa ser, que não um pastor de cidades? Como posso albergar um Mundo em mim, se ele não pára quieto?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Uma prenda especial

No dia que muitos irrita, pela sua recente toada consumista, não me consigo conter e oferecer a todos os amantes esta "toada" nova, de Carlos Drummond de Andrade.

Toada do Amor

"E o amor sempre nessa toada!
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também
que graça a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito. " Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Parentesis maquiavélicos

E pensar que, há momentos,
Esta boca, estes lábios
Que agora beijam
As faces de meus rebentos,
Há pouco mergulhavam,
Ansiosos, à bruta,
Entre as pernas daquela puta.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

A morte de Astor Piazzolla

Sentindo a boca seca, levanto a mão e contemplo estes dedos que nunca entendi. Que deixei para trás? Ainda não parti e sinto que ainda há muitas Milongas para compor, numa vida que agora me volta a face. Que diabo de secura... Depois de milhares de dias, com o peito a rebentar de sons,

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Dia de S. Burgesso

Há dias assim e dias assado. Hoje não foi um, nem outro. Foi qualquer coisa entre o assim-assim, roçando o simsenhor. Daqueles em que se vai daqui para ali, mas não acolá. Um dia estratificado, entre o vinagre e o azeite. Foram vinte e quatro horas que não se chamaram assim. Vinte e quatro coisas e tal. Hoje foi um dia que não foi salgado, mas também não foi doce. Um dos dias que não são noite nem dia, antes lusco-fusco.
Hoje foi um dia de merda por ter sido ontem.