domingo, 23 de dezembro de 2007

Natal, Idade

O nosso correspondente em Lavacolhos (Silvares da Beira):
'É com a boca cheia de bolo-rei que vos escrevo. É Natal. Acaba de chegar. Este ano diz que a avó não vai dormir e babar o sofá nos dez minutos que se seguirão ao jantar de consoada. A prima não vai oferecer o traste do costume. As mensagens de telemóvel serão copiosamente abafadas sob a cascata autoclística da retrete. O petiz vai ficar feliz. A televisão vai dar algo de jeito. O Cavaco vai comer com maneiras e fará o discurso mascarado de rena. Torrentes de amigos e conhecidos (estes últimos mais abundantes, segundo fonte do INE), soterrados sob camadas geológicas de esquecimento, terão o gesto simpático de nos incluir nas suas quilométricas listas de destinatários da sua inteligente-expressiva missiva natalícia. Eu vou comer polvo, ele comerá bacalhau, mas há quem coma perú. Também é chique a alheira de marmota, o caviar de chaputa e a inolvidável chanfana das Aleutas. Trocar-se-ão presentes, amor e insultos. No quentinho do domicílio.
O Natal é cada vez menos meiguinho. Fui violado pelo Natal.
Segue a emissão com a informação horária. Não perca dentro de momentos o espaço "Conselhos & Dicas", hoje com o tema "Colocação do perservativo para manetas."
Da minha parte é tudo. - Tito Lívido, O Desgraçador em Lavacolhos'

O'Neill


TROPEÇO DE TERNURA POR TI




"É simples a separação.


Adeus.


Desenlaçado o último abraço, uma pressa de dar cos-


tas um ao outro


Já não há gestos. O derradeiro (impossível) seria não


desfazer o abraço.


Pressa de cada um retomar o outro na teia lenta da


rememberança.


Não desfazer o abraço. Ficar face encostada ao niagara


de cabelos.


Sobram fotografias, voz no gravador, um bilhete na


caixa do correio. Sobra o telefone.


Tensão-telefone. Experimentada. Sofrida.


Tensão-telefone. Possibilidade de voz não póstuma.


No gravador, voz de ontem, de anteontem. De há anos.


Sobra o telefone. Mudo.


Retininte?


Sobrarão as cartas. Sobra a espera.


Na teia lenta da rememberança, retomo-te em memória


recente: na praia de ternura onde nos enrolámos e desen-


rolámos desesperados de separação.


Sobra a separação."




Alexandre O'Neill






quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Satisfacçoes

O primeiro olhar através da janela ao acordar

o velho livro reencontrado

rostos entusiasmados

neve, a mudança das estaçoes

o jornal

o cao

a dialéctica

tomar um duche, nadar

música antiga

sapatos cómodos

compreender

música nova

escrever, plantar

viajar

cantar

ser amável
Bertolt Brecht

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Aquilino para intelectuais.

Nunca como hoje me causou tanta repulsa a propensao para o cinismo enciclopédico que têm os jornalistas e ilustres emissores de opiniao em Portugal. A propósito da transladaçao dos restos mortais de Aquilino Ribeiro para o Panteao Nacional muita nota, artigo e notícia foi publicada. Em todas se referiam obras emblemáticas do escritor, mas nenhuma se referia ao clássico Romance da Raposa. E eu pergunto porquê? Talvez, tocados por um secular provincianismo, esses senhores se sentissem incomodados ao citar uma obra cujo alvo principal sao as crianças. Citar um conto infantil juntamente com obras de solene título como "O Jardim das Tormentas", ou "As Três Mulheres de Sansao", poderia beliscar a imagem que tanto esforço lhes custa cultivar de intelectuais aborrecidos num país atrasado. Fosse o autor um estrangeiro, talvez um Hans Christian, já a cantiga mudava o tom. Na minha memória, Aquilino permanecerá o narrador de uma certa realidade rural, o Aquilino dos regionalismos (às vezes crípticos), o Aquilino d`"O Malhadinhas", o Aquilino da Salta-Pocinhas.
Nota Para Pulido Ler:
Nao discuto a subjectividade dos gostos. No entanto, o dia em que Vasco Pulido Valente escrever algo de positivo relativamente a uma pessoa ou a um assunto que sejam considerados motivo de júbilo pelos demais habitantes do planeta , será efusivamente comemorado com milhares de litros de Raposeira e constituirá efeméride a assinalar em ediçoes futuras d'A Minha Agenda.
Larga a pata.

Afinal, apeteceu-me dizer algo mais...


Pronto. Está bem. Nao sou um tipo coerente, nem tenho problemas em contradizer as mais férreas e dramáticas decisoes pessoais. Cócó para elas.

Hoje apeteceu-me beber um pouco de sidra, na companhia de Arlette, antiga companheira de chinquilho, nessas já longíquas tardes estivais passadas na Costa da Caparica. Receio que tenha bebido demais.


quinta-feira, 17 de maio de 2007

Fim

Hoje não escrevi até me fartar. Fartei-me de escrever.

Obrigado e até sempre.

Massa com carne guisada

Faltam duas horas para o jantar. O pássaro da vizinha arma-se em pavarotti-de-penas. A rua é uma passagem estreita, silenciosa, vazia de gente, oprimida pela canícola vespertina. Dizem (disseram-me esta manhã) que este calor não é normal para esta altura do ano em paragens asturianas. De facto, queima. Os móveis cheiram a pronto e o canário está histérico. Há pouco, no terreiro das traseiras, a gata reboluda reboluda do vizinho do primeiro andar cheirava os canteiros floridos. Pensei na Sophia (Ia e vinha...). Às vezes, , a luz que atravessa as vidraças muda de cor com rapidez. E de intensidade. Percebem-se as nuvens no céu. Enfim. O pássaro canta. Faltam duas horas para o jantar.

A Sombra


De início, não dava pela sua presença. Hoje, tudo é diferente. Uma circunstância inédita, uma desviação milimétrica na roda dentada da sua rotina atiçara o factor X no sentido de uma nova consciência. Nesse dia, deu por ela, fria, destacada da pele humana. O choque estava na noção da sua omnipresença desde há muito tempo. A saber, todas as infâmias e vergonhas comprometedoras de um passado oculto nos recessos da memória não só tinham sido por ela presenciadas, mas também imitadas com enjoativa exactidão, uma perfeita momice infantil. Nesse dia, percebeu que existia a dobrar, que arrastava uma negra dobra de luz sobre si mesmo. Não soube o que fazer, era solitário, não lidava bem com proximidades. Certa vez, chegara mesmo a rosnar quando um transeunte se sentou no lugar contíguo ao seu na estafa do autocarro. Deixou de se deitar com as namoradas de ocasião; sempre via outro casal igual, repetindo os mesmo gestos obscenos, negros, irritantes na precisão com que duplicavam a sua acção. Ganhou a obsessão de conseguir falar antes dela, de provocar um movimento de lábios que fosse, de facto, um movimento único, não dois, sempre dois. O dois era negro e gozava com ele.


Como no início, hoje é tudo diferente. Tornara-se uma sombra do que era.

domingo, 8 de abril de 2007

Na bagagem

Ó senhor remexedor de malas...deixe lá quieta a cueca, que não é de talibã!
Dentro da mala só vai encontrar objectos aborrecidos, esperando embarcar nessa maldito navio alado. A roupa é velha, mas cuidada com a atenção de quem não liga a essas coisas. O despertador que a minha mãe me ofereceu, não vá eu ficar roncando (seu poltrão!) nas manhãs que se querem de dura labuta. Também há livros, sim senhor, para os dias em que me canso de ler o mundo asquerosamente real e me sinto bruto de vidinha. E também me lembram Lisboa. Os cadernos, onde escrevo o que a pena me dita, são cofres de listas de compras esotéricas e pensamentos obscenos (não vale a pena... estou a avisá-lo!...).
Está a ver? Uma mala perfeitamente normal, depois de uma despedida rotineira. O vazio já cá canta (ó prós males espantados).
Na minha bagagem está o amor amputado, que me dedicarei a compôr.
(E pronto, já não me deixam subir para o avião...)

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Voltar para principiantes

...é o regressar ao ponto de partida. Empreender uma viagem em sentido inverso, para chegar à fraude da expectativa. Encontrar Lisboa imersa num espesso dilúvio de chumbo, no lugar de uma imensa praia tropical onde os peixes saltam para as grelhas e as papaias competem com as bananas nos fartos estômagos nativos. Dizer que se quer o dia em movimento e acabar apenas mexendo os olhos. Planear não sei bem o quê e depois verificar com irritada frustração que infantilidade nos povoa.

Voltar e chegar são afectados por um operador anti-simétrico, estando situados nos antípodas diametralmente opostos da Via Láctea. Se acaso se tocam, e apesar dos problemas de escala, produzem-se supernovas de ilusão, uma morte interna espectacular num fogo de artifício de ridículo.

Assim, quando se volta, apenas se pensa em chegar. Depois de chegar, o sentido do patético impulsiona-nos a voltar.

Esta é a uma versão da Primeira Lei de Newton, ou A Impossibilidade de Dois Testículos Constituírem UM Par.

(texto escrito com um olho posto na loiça por lavar)

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

A Gola em Alta

Hoje, ao sair de casa, dei com um grupo de miúdos rodando um charro à porta da Associação Asturiana de Fibrose Quística.

Hoje, também, faz um ano que principiou a actividade de Sony Hari no seu blog www.gola-alta.blogspot.com e interrompo as minhas investigações pseudo-científicas para deixar aqui expressos os meus mais roliços parabéns. Foi um ano de textos cuidados, com teores que foram desde o saudosismo intimista, desabafos espirituais, ânsias incontidas, à fotografia catita e alguma culinária da felicidade.

Fui informado que no próximo aniversário Sony Hari patrocinará uma vetusta celebração no Gambrinus. Bem-haja!

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Preferir mulheres

Aviso já que isto não é propaganda em favor do aumento das liberdades para lésbicas. Aviso feito.

Quando era um imberbe petiz, a minha mãe sempre se preocupou em perguntar com quem tinha andado a brincar naquela tarde, uma vez aparecido na cozinha para jantar, ofegante e mal lavado das minhas tropelias vespertinas. Saber-lhes os nomes servia algum critério de avaliação de conduta obscuro, faculdade esotérica apenas ao alcance das mamãs deste mundo. Ciente do resultado pouco pedagógico em aconselhar "boas companhias", apenas insistiu no inquérito, essa pergunta velada de censura ou aprovação, "quem é...?". Isto até hoje, não parecendo desanimar-se com os meus barbudos 25 anos.

A verdade é que quem escolhe sou eu, mamã. E, depois de anos de inconsciente e venturosa experimentação, venho aqui revelar o que mais me convém como companhia ideal. Antes de fazer a revelação de tão titânico empreendimento científico (custou-me uma puberdade e dois vícios), a lei obriga-me a exibir a correspondente ficha técnica:

- A companhia ideal é definida em função da situação mais propícia ao ócio e à preguiça contemplativa. Companhia ideal para se deixar estar numa maré de conversas fúteis e entregue a práticas sensoriais degustativas. Cum catano!, é a companhia ideal para se ir para o café!

- As observações foram feitas na sua esmagadora maioria em território nacional e as restantes em vários países europeus, ao longo de um período de tempo porreiro para se poder tirar ilações estatísticas deste género, ou seja, uma adolescência e sete anos no Tibete dos adultos;

- Não foram torturados animais durante a realização deste estudo.



Gosto da companhia de pessoas. Queria escrever isto. Prefiro as pessoas aos animais que não falam, não escrevem, não pintam, etc. e que cagam tudo por onde passam. E não tomam café.

De entre as pessoas, os homens são uns animais, no que à companhiologia da questão diz respeito. Falam alto, são demasiado básicos e coçam o tomatal sem pinga de pudor. A companhia ideal (estamos a considerar uma situação limite do prazer) para um café nunca poderia ser um homem. E depois, andam à porrada e eu sou um maricas.

É óbvio que a companhia ideal não poderia ser uma mulher. Uma mulher sozinha com um homem à mesa de um café é como Waterloo antes de soar o primeiro canhão. Confesso que é sempre confrangedor e são dois pesos sobre os nossos ombros: o de milhões de anos de astúcia biológica cruel e, pior de todos, a possibilidade de decotes generosos (peso a dobrar).

A companhia ideal é, sem margem para dúvidas, um grupo de mulheres. Não muito grande, senão ninguém se entende neste tasco. O suficiente para fazer uma roda simpática à volta da singela mesinha.
Se somos o único homem, rapazola, gaiato, no meio de mulheres, é imediatamente criada uma cumplicidade entre as convivas que visa reduzir-nos à ingenuidade. Essa conjura feminina traduz-se em frases crípticas (julgam elas!) que terminam em gargalhada geral, sinais, toques, etc. , que devemos receber com expressão desorientada, real ou fingida. No entanto, da mesma forma elegante, sem gases, arranhadelas nas gónadas, concursos de imperiais e vivas ao Benfica, instala-se um ambiente propício a qualquer tema de conversa, sobretudo aos mais fúteis, que tanto me divertem e soltam o riso. Ninguém sabe cultivar melhor o artificial que as mulheres. E o artificial é o que de mais humano pode haver. É exclusivamente nosso, nasceu do nosso acto de existir enquanto peculiaridade orgânica e está vedado à Mãe Natureza. Não é, portanto, abusivo dizer que as mulheres, colectivamente, são as principais portadoras da tão gasta "condição humana". Está-se bem entre elas.
Claro que isto é uma pretensão de aprofundamento disparatado da questão "com quem tomaria eu café pela última vez na vida?", mas para isso é que existem blogues. E cafés.