sexta-feira, 12 de maio de 2006

História de Susto e Imaginação (parte II)

Ficaram assim estendidos e tapados até ao nariz, com os olhos quase saltando das órbitas, tal era o receio que sentiam em relação ao universo escurecido do quarto, onde as negras formas se divertiam apanhando banhos de Lua.
Estava a rapaziada nestes preparos quando a porta se abriu para deixar entrar a Rita, sua irmãzinha mais nova, que vinha com a cara branca como cal, avançando hesitante nas suas pantufitas em forma de gato Silvestre, o dos desenhos animados. Deixando a porta entreaberta atrás de si, dirigiu-se para a cama do Luís, que era o mais velho dos três, dizendo aos solavancos:
- Mmm...Momo...Montro!
Não percebendo bem as palavras mal articuladas da irmã assustada, Luís ergueu-se na cama.
- Quê? – perguntou apurando o ouvido.
- Montro!- repetiu a petiza, apontando o vazio negro para lá da porta
A face alva da Rita estava com pequenos vincos de receio nos cantos da boquita e no meio da testa rosada. Via-se que tremia um pouco, porque os caracóis loiros que lhe caíam em cascata sobre os ombros, vibravam como espigas numa seara em dia ventoso.
Os dois irmãos saltaram da cama num só movimento, recebendo em todo o corpo o choque do ar gélido do quarto. Fitaram-se durante uns momentos, até que o Pedro perguntou:
- Onde está o monstro, Rita?
- Na sala.- e aqui a menina já se escondia na cama quentinha do Luís, pondo a almofada sobre a cabeça.
Preso pelo medo ganho na conversa que tivera com o Pedro, Luís deu finalmente o primeiro passo em direcção à porta. Pé ante pé, passaram em frente ao quarto dos pais, percorrendo o corredor até à extremidade onde se encontrava o início da escada que descia em direcção à sala. O monstro estaria, portanto, na divisão da casa onde a família passava os seus serões e comia as refeições em dia de festa. Chegádos ao fim do corredor, a terrível visão que tiveram do cimo das escadas quase parou o coração das pobres crianças. Lá estava ele, materializado numa sombra de contornos horríveis, projectada na parede branca que acompanhava a escada na sua descida até à sala. A criatura tinha vários metros de altura, outros tantos de comprimento, uma cabeça enorme e quase esférica, no cimo da qual despontavam dois soberbos chifres. As patas eram grossas como as colunas de um templo romano, movendo-se bruscamente em espasmos. O dorso arqueado possuia uma sequência de escamas finas e triângulares, movimentando-se para cima e para baixo. A cauda permanecia repousada no chão, agitando-se apenas a sua ponta, num gesto de aviso, tal como um cascavel.
É necessário dizer que nas crianças, mais irresistível que o receio é a curiosidade. Assim, em silêncio e quase em simultâneo, Luís e Pedro principiaram a descida das escadas, movidos pelo desejo de verem a besta senhora daquela sombra. Durante o percurso, feito de forma vagarosa e calculada, teria sido possível a uma sevilhana dançar ao som do bater dos dentes dos meninos. Quando chegaram ao ponto da escada a partir do qual já se podia ver toda a sala, abriram os olhos, transbordantes de ansiedade, e... viram-no. O monstro. O gato Rodolfo, fazendo tropelias com um novelo de lã sobre a mesinha de café, posta no meio da sala em frente ao sofá grande, onde também havia um candeeiro deixado ligado por esquecimento dos pais.
Já respirando normalmente e enxugando o suor da testa com as costas da mão, os irmãos descansaram.
- Tens razão, Luís: à noite as sombras soltam-se da gente.

quinta-feira, 11 de maio de 2006

História de Susto e Imaginação (parte I)




- Luís, estás acordado? – sussurrou Pedro, apoiado num cotovelo.
Na cama ao lado, banhada pelo luar que entrava pela janela, ouvia-se o som da respiração de alguém que ainda não dormia.
- Sim, mas não devia. Amanhã estaremos cheios de sono pela manhã. Que tens?
- A Rita saiu há uns minutos, talvez para ir à casa-de-banho, e ainda não voltou. Desde então que não consigo adormecer.- comentou o Pedro.
Luís suspirou, enquanto se destapava, pondo as pernas fora da cama. Tinha os olhos fixados na janela, por onde entrava aquele rio de prata que iluminava o quarto. A luz prateada tem o dom de fazer maiores os objectos, deformando-os, sobretudo aos olhos dos meninos que não conseguem dormir. Esfregando a vista, Luís levantou-se e, descalço, acercou-se da janela. Lá fora o mundo fora absorvido por um manto negro, cozido a pérolas perto do horizonte, onde ficava o mar. As copas dos pinheiros do bosque em frente, de silhuetas cortadas pela luminosidade lunar, baloiçavam ao vento, causando uma sensação de estranheza em Luís. Eram mesmo parecidas com gigantes, impacientes no seu agitar, de lá para cá, de cá para lá, severos, prestes a marchar sobre a casa dos meninos que deviam estar a dormir. Confortado pela presença do irmão, o Pedro nem pensava nestas coisas. Um pouco assustado com o exército de espectros da Lua Cheia, Luís voltou para a cama, onde se sentou, massajando os braços para enganar o frio nocturno. Notou seu irmão acordado, olhos fitos no tecto, mãos atrás da nuca, como se estivesse deitado na relva de um jardim numa bela tarde de Primavera.
- Pedro...- começou – será que as coisas, quero dizer, os brinquedos, os móveis e assim; mudam de forma, assim que apagamos a luz? Estamos quase sempre de olhos fechados, por isso nunca pensámos muito nessas coisas...
- Bem, eles lá estão. Consigo adivinhá-los no escuro do quarto, porque lhes vejo alguns contornos. Mas as cores não as vejo, nem posso ver o seu tamanho.
Interessado pela conversa, Luís sentou-se encostado à parede gelada ao lado da cama, enquanto dizia:
- Já reparaste nas sombras? Dir-se-ia que se movem quando não estamos a olhar para elas. – neste momento a voz do Luís passou a ter um timbre mais agudo e trémulo, mas era fácil perceber que isso nada tinha que ver com o frio.
- Mas as coisas não têm vida! São feitas de plástico, metal, pedra, madeira e coisas assim! – exclamou o Pedro, de olhos esbugalhados, começando a sentir medo daquelas formas negras que o luar abraçava.
Após breves segundos de silêncio, Luís, como para camuflar-se de breu, enterrou-se nos lençóis até ficar só com os dois olhitos à vista
- Supõe tu, Pedro, que o escuro faz com que as sombras se descolem das coisas às quais pertencem. Só que, como são muito pastosas e assim, só podem mexer-se um pouco de cada vez.
- Que ideia estranha, pá – disse com voz quase apagada o Pedro, começando a desgostar da conversa.
- E se houver algo, como um fantasma especializado em empurrar sombras? Como aqueles senhores que arrumam os carrinhos de compras nos supermercados.- propôs o Luís, falando das profundezas do seu ninho de tecido, enquanto olhava em volta, sondando tudo em seu redor.
- Sabes bem que não existem fantasmas!
- Mas o Eurico, do 6º ano, diz que viu um em casa da tia, lá no Fundão. Para além disso, já te disse que nós não sabemos como ficam as coisas assim que fechamos os olhos.
- Agora é que não durmo mais!.... – concluiu o Pedro.