segunda-feira, 31 de julho de 2006

Miles of illusion

Estava feito. Não havia regresso da maré encarnada a que se lançara. Deitando um olhar em redor da sala mergulhada na espessa penumbra crepuscular, descortinou a porta que sabia dar acesso à casa-de-banho. Uma vez lá dentro, diante do espelho repleto de manchas sebosas, deparou-se com uma tenebrosa aparição. No vidro conspurcado desenhava-se uma cara ossuda, olhos raiados de sangue, um queixo pequeno, ligeiramente erguido, que lhe conferia um porte de certa distinção. O nariz pingava água, sintoma de constipação que lhe pareceu obsceno na circunstância em que se encontrava. Nada deveria relembrá-lo de que estava vivo, no entanto procurava papel para se assoar. Passou as mãos por água, demorando bastante mais do que seria razoável. Encontrava-se bloqueado e apenas concentrado na sensação que a escorrência do líquido lhe provocava, primeiro nas mãos, depois num arrepio que trepava espinha acima. A certa altura, o frio tornou-se-lhe insuportável e despertou daquela letargia absurda. Com gestos lentos, e não sem tornar a fitar a face mirrada que o espelho reflectia, puxou de uma toalha que lhe pareceu áspera ao tacto, dando a impressão de uso ininterrupto desde longo tempo. A lâmpada precariamente pendente do tecto, lançava uma luminosidade intermitente; profecia de extinção que se avizinha na certa, ocorrência simplória em todo aquele cenário, mas plena de infames simbolismos para um homem torturado na sua consciência.
Saiu da casa-de-banho de cabeça baixa, com a vista posta nas redondezas que os seus pés frequentavam. Pensou que devia manter um certo sangue-frio e procurar detalhes insuspeitos que denunciassem postumamente a sua presença naquele apartamento, naquela noite. Em tudo se assemelhava a um cidadão que lança um último olhar ao seu lar antes de partir para umas merecidas férias. Decidiu fazer café, internando-se numa busca pela cozinha, certamente desnecessária e arriscada, mas sentiu que precisava de um impulso interior para tomar a decisão de partir, porque, no fundo, a sua viagem já começara minutos antes. Bebeu aquele líquido sujo, demasiado amargo para o seu gosto, e saiu do apartamento de forma intempestiva.
Os primeiros raios de sol, peneirados pelos estores da janela, começavam a dissolver a treva, incidindo sobre o cadáver de adolescente, ainda quente, tombado no meio da sala em cima de uma imitação barata de tapete persa.
Lá fora ouviam-se os arranques esforçados dos autocarros que despertam a cidade da sua latência nocturna para mais um dia de insanidade. Na sala, Miles Davis soltava as tristes notas de It Never Entered My Mind.